POR QUEM OS SINOS DOBRAM (uma reflexão sobre a solidariedade)

31 de Dec / 2018 às 23h00 | Espaço do Leitor

Começo recorrendo ao mestre John Donne, citado por Ernest Hemingway, no clássico "Por Quem os Sinos Dobram": “Nenhum homem é uma Ilha, um ser inteiro em si mesmo; todo homem é uma partícula do Continente, uma parte da terra. Portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram. Eles dobram por ti”.

Costuma-se dizer que o que nos une, enquanto humanidade, é maior do que aquilo que nos divide. E é verdade. Pelo menos nestes aspectos: habitamos sob o mesmo teto, respiramos o mesmo ar, bebemos a mesma água; vivemos sob o mesmo céu, nos banhamos no mesmo mar, nos alimentamos dos mesmos nutrientes; temos em comum o nascer, o viver e o morrer; partilhamos dos mesmos problemas, das mesmas inquietações, das mesmas incertezas; somos semelhantes em tudo, inclusive na finitude; participamos dos mesmos destinos, viajamos na mesma embarcação, estamos sujeitos aos mesmos limites.

Características comuns, destinos comuns, inquietações comuns, desafios comuns exigem dos humanos gestos, atitudes, caminhos igualmente comuns. 

Isso implica a capacidade de ver e sentir o que se passa no entorno, de olhar para além do próprio umbigo, de sair da área de conforto e ir ao encontro do outro, de fazer além do que se é cobrado. Significa assumir a defesa do outro; mais do que isso: colocar-se no lugar do outro, sentir a dor do outro, interessar-se pelo outro; correr risco pelo outro. Implica, às vezes, não apenas ensinar o caminho, mas pegar na mão do outro e levá-lo até o caminho; não apenas ensinar a pescar, mas também pegar no anzol e ajudar o outro a pescar; é colocar “o coração na miséria alheia”, no dizer de Guimarães Rosa; é Ir junto, fazer junto, incomodar-se junto, resistir junto, lutar junto, celebrar junto...

Carregamos em nós infinitas possibilidades, entre as quais a de superar o individualismo tacanho que nos avilta e nos distancia do nosso real papel enquanto membros de uma comunidade de semelhantes. Carregamos em nós, igualmente, a disposição para práticas concretas de altruísmo e de dedicação ao serviço da causa humana, bem como do ambiente em que vivemos, nele incluídos outros seres vivos, a terra, o mar, o ar, os rios, as florestas.

Só a solidariedade, como valor universal e intrínseco à natureza humana, é capaz de conceber relações de paz, de justiça, de tolerância, de respeito às diferenças (individuais e coletivas), de acolhimento ao migrante, ao refugiado, aos que se encontram à margem da sociedade, aos excluídos de tudo e de todos.

A solidariedade está na luta dos defensores do acesso à terra por parte daqueles que dela dependem para morar, trabalhar, cultivar sua lavoura, alimentar sua criação, comer, beber, educar seus filhos. 

A solidariedade está na luta dos defensores do uso da moradia por parte de quem não dispõe de um lar digno onde possa repousar com o mínimo de conforto e segurança. 

A solidariedade está na luta dos defensores das populações de rua, habitantes de outra cidade dentro da mesma cidade, cidadãos de papel, reféns da culpa de terem nascidos pobres, pretos, gays, lésbicas, analfabetos, nordestinos, alcoólatras. 

A solidariedade está na luta do povo indígena em defesa do seu direito à terra, aos rios, às florestas, à caça, à pesca; bem como ao pleno usufruto das suas culturas, das suas línguas, das suas religiões, dos seus saberes, das suas filosofias, dos seus mistérios, dos seus feitiços. 

A solidariedade está na luta do povo afrodescendente que a todo momento busca impor-se, ocupar espaços de decisão, e usufruir de oportunidades iguais em relação aos demais, não obstante os estigmas do preconceito racial (e social) de que foi e continua sendo vítima. 

A solidariedade está na luta política em defesa das liberdades democráticas, na promoção dos direitos humanos e sociais, na afirmação das minorias, na preservação do meio ambiente, no fomento de iniciativas que proporcionam o pleno exercício da cidadania.

A solidariedade está na luta pela construção de uma nova ordem econômica, com base nos princípios do cooperativismo, e sem submeter-se à concorrência desleal e selvagem imposta pela lógica do capitalismo.

A solidariedade está no sangue dos mártires, semente da nova terra, certeza do novo amanhã, rastro de luz a dissipar a escuridão mais pavorosa. 

A solidariedade está no testemunho dos profetas do povo, anunciadores da Boa Nova da paz, da justiça, e coconstrutores de uma sociedade de fato civilizada, ética, fraterna e inclusiva. 

A solidariedade liberta, transforma, move montanhas, opera milagres, mexe com velhas estruturas, destrona a estupidez, o egoísmo, o orgulho, o rancor; constrói mundos solidamente saudáveis, forja espaços de exercício da liberdade, de promoção da vida, de devoção à dignidade dos seres humanos; de cuidado com tudo o que existe.

Comecei com John Donne e termino como Paulo Freire: “A solidariedade tem de ser construída em nossos corpos, em nossos comportamentos, em nossas convicções”.

José Gonçalves do Nascimento
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