O RÁDIO DO MEU PAI (Crônica)

29 de Jul / 2019 às 23h00 | Espaço do Leitor

Em nossa casa o rádio era quase que um membro da família. E tínhamos para com ele uma relação quase que de amor. Longe de ser apenas um aparelho receptor de ondas magnéticas, um item do mobiliário, ou coisa equivalente, o rádio era o símbolo do encanto, da poesia, do arrebatamento. O rádio nos falou da vida. Nos aproximou do mundo. Nos instigou a sonhar. 

(Mais do que uma caixa de som, o rádio era uma caixa de sonhos).

O rádio unia; conectava; estabelecia pontes (e pontos) de comunicação – quer no âmbito interno, familiar, quer no âmbito externo, para além das fronteiras; o rádio marcou época; formou gerações; forjou culturas; imprimiu costumes. 

Não há como falar do Brasil sem falar do rádio. E não há como falar do rádio sem falar das divas da voz, que encantaram o país com suas letras e melodias. Ou do “Repórter Esso”, a fazer escola entre os profissionais da comunicação. Ou ainda das rádios-novela, as precursoras dos atuais folhetins, que noite e dia povoam os canais de televisão. 

Da mesma forma, não dá pra falar do rádio sem acenar para os monstros sagrados da transmissão futebolística, caso de um Luís Penido, de um Jorge Cury, de um Waldir Amaral, ou de um José Carlos Araújo, eles que por anos seguidos encantaram os amantes do esporte com suas espetaculares narrações.

Poderíamos até mesmo falar de uma geração do rádio; foi a geração que testemunhou o começo e o fim da segunda guerra; a chegada do homem à lua (se é que chegou, rsrs); o genocídio do Vietnã por parte da turma do Tio Sam; as intrigas e futricas da politicagem do sul; a trama ensurdecedora que obrigou Getúlio a sair da vida para entrar na história; os rasgos demagógicos de Jânio e JK; a quartelada que alçou os milicos ao Planalto Central; a verve retumbante de Jango e Brizola; a retórica ufanista dos propagandistas dos senhores do poder – espécie de fake news a la Bossa Nova. Foi a geração que assistiu de perto à afirmação da cultura nacional; que viu surgir o Cinema Novo; que cantou com Dalva e Cartola, com Caetano e Gil, com Gonzaga e Jackson do Pandeiro; que vibrou com o Choro, com o Samba Canção, com a Jovem Guarda, com o Baião, com o Tropicalismo. Foi a geração da vanguarda rebelde; da grita utópica e revolucionária; da canção livre e perturbadora. 

Embora mais jovem, foi pelo rádio que inicialmente tive contato com as coisas que se passavam lá fora, para além dos confins da minha pequena aldeia. 

Pelo rádio soube da eleição de João Paulo II, em 78. Da posse de Figueiredo, em 79. Do fim do exílio de Arraes, também em 1979. Da morte de Luiz Gonzaga, em 89. Pelo rádio acompanhei a última partida da copa de 82, quando a Itália bateu a Alemanha por 3x1. O primeiro comício das “Diretas Já”, em 84. O discurso de Tancredo na eleição do colégio eleitoral, em 85. A promulgação da Constituição Cidadã, em 88. Pelo rádio, ouvi os hits e ritmos que embalaram os anos 70 e 80, levando ao quase delírio uma juventude cabeluda e boca de sino. 

Trago sempre viva a memória do rádio do meu pai a nos acordar nas manhãs sertanejas; era um Semp, quatro faixas, grandão, um primor de aparelho; depois vieram outros e mais outros, todos igualmente primorosos: um Nord Son, um ABC Canarinho, um Campeão Alvorada, um Frahm PL 500...

(Os rádios, geralmente fixos e irremovíveis, eram entronizados em cima de mesas ou pedestais onde desfrutavam de destaque absoluto, igualando-se não raro aos objetos sagrados).

O programa favorito naquelas primeiras horas do dia era, via de regra, a “Linha Sertaneja Classe A”, do Zé Bettio, na antiga Record de São Paulo; era ao som do seu repertório – repertório que ia desde Inezita Barroso a Tião Carreiro e Tonico & Tinoco – que meu pai se ajeitava todas as madrugadas a fim de enfrentar o batente. 

Batente que só se findava, de fato, às sete da noite, quando vibravam os primeiros acordes do "Guarani", de Carlos Gomes, introduzindo a "Voz do Brasil" e, com ela, o noticiário do dia. 

O rádio foi assim uma espécie de trilha, a conferir alma e ritmo aos nossos dias – desde a alvorada até o anoitecer. Com ele despertávamos e com ele repousávamos. Com ele transpúnhamos fronteiras e com ele varávamos a noite. Com ele mergulhávamos na ilusão e com ele perseguíamos a utopia. 

O rádio fez-se norte. Fez-se luz. Fez-se um pássaro misterioso a semear encantos pelas paragens desertas de vozes e de ouvidos. O rádio fez-se eterno

José Gonçalves do Nascimento - Cronista

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