Especialistas alertam para banalização de preconceitos por motivação política

23 de Oct / 2022 às 22h00 | Variadas

Presente na sociedade de forma aberta ou disfarçada, o racismo muitas vezes usa de subterfúgios para se esconder. O presidente do clube gaúcho onde o cantor Seu Jorge foi vítima de gritos racistas, Paulo José Kolberg Bing, disse à polícia que a motivação das manifestações discriminatórias contra o artista teria sido um gesto feito por ele em referência ao candidato à Presidência da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O caso aconteceu no último dia 14, em Porto Alegre, mas Bing depôs apenas na quinta-feira passada.

De acordo com a delegada responsável pela apuração, Andréa Mattos, o gestor afirmou que a razão do crime pode ter sido um evento "isolado". Segundo a delegada, o presidente alegou não ter visto nenhuma atitude racista contra Seu Jorge, apesar de estar presente durante toda a apresentação. Em nota, o clube Grêmio Náutico União reforçou que já disponibilizou todas as informações cabíveis à Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância e está aberto para cooperar com a investigação.

O cantor se pronunciou sobre os ataques que sofreu no show e os descreveu como "grosserias racistas". O artista relatou a frustração com a capital gaúcha, que, em suas palavras, "aprendeu a amar". "Presenciei muito ódio gratuito e muita grosseria racista", disse. A manifestação do cantor foi seguida por uma série de personalidades que prestaram solidariedade à luta negra no país. A cantora Paula Lima, o jogador Daniel Alves e a jornalista Flávia Oliveira ressaltaram a necessidade de se enfrentar o racismo.

Nas redes sociais, o governador do Rio Grande do Sul, Ranolfo Vieira Júnior (PSDB), lamentou o fato e disse que a atitude racista contra Seu Jorge não representa o estado. Sebastião Melo, prefeito de Porto Alegre, também repudiou os gritos contra o cantor e se colocou contrário à politização do caso. "O combate ao preconceito não pode ser politizado", escreveu no Twitter.

O Movimento Negro Unificado enviou, na quinta-feira, um pedido de apuração à Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos de Porto Alegre. A pasta requer a investigação e a responsabilização das pessoas envolvidas, assim como do clube Grêmio Náutico União (GNU), no episódio. Dessa forma, o Ministério Público do estado já iniciou buscas de provas e de suspeitos por meio da Polícia Civil.

Para Beethoven Andrade, presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-DF, atualmente os preconceitos vêm sendo expostos sob a alegação de debate ideológico. Andrade comentou que a politização da sociedade brasileira, sobretudo em meio às eleições deste ano, tem sido usada como plano de fundo para atacar minorias e manifestar ideais criminosos. "A fim de defender uma ideia política, em tese democrática, acabaram se banalizando algumas pautas, principalmente ligadas às minorias. Em nome do livre debate, não houve combate ao racismo ou aos outros tipos de discriminação."

Na avaliação do advogado, as pautas eleitorais aumentaram a exploração da imagem negra e evidenciaram os movimentos da sociedade brasileira contra as falas de minorias. "Isso se deve à cultura escravocrata que mina a voz negra. A exploração da imagem da pessoa negra continua dentro de uma cultura ainda muito preconceituosa, que tem se evidenciado até no entretenimento."

Três dias após o caso em Porto Alegre, o humorista Eddy Jr, de 28 anos, foi vítima de ações racistas em São Paulo. O comediante postou, na segunda-feira, um vídeo que mostra uma mulher gritando "Fora, macaco!" para ele. Nas imagens, ela ofende o rapaz na tentativa de expulsá-lo do prédio onde ambos moram.

Diferença judicial
A advogada Patrícia Guimarães explicou que a maior dificuldade para julgar ações discriminatórias é tipificar a situação como racismo. Guimarães argumentou que muitos casos no Brasil são enquadrados como injúria racial, cuja pena é mais leve e prevê pagamento de fiança, devido à tendência da população de "subdimensionar" atos racistas.

Conforme Patrícia Guimarães, injúria está atrelada a ofensas discriminatórias. Já racismo deve conter algum vínculo impositivo, como quando alguém é impedido de entrar em um estabelecimento ou se matricular em um curso pela cor da pele. "Temos uma lei, mas ela não é seguida à risca. O racismo estrutural existe, mas é tratado como frescura. Precisamos que a população e as autoridades, as delegacias, se conscientizem a respeito dessa diferença e que valorizem a luta negra. Só assim começaremos a punir de verdade a discriminação, pois hoje, vejo que muitas vezes fechamos os olhos para situações tão dolorosas para a população", finalizou a especialista.

Correio Braziliense

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