POEMA "SINTOMA" - UMA HOMENAGEM A CAZUZA

04 de Apr / 2016 às 23h00 | Espaço do Leitor

* Paulo Carvalho (SPO)

“Se você quer saber como eu me sinto, vá a um laboratório ou um labirinto”.

Cobaias de Deus - Cazuza

Sinto a manhã nascendo morta

E o Sol crescendo em meus olhos como bolas de fogo

Urubus matinais rondando cadáveres

Contando segredos aos vermes de cemitério

 

Minhas pálpebras amanheceram sedentas de luz

E o túnel por onde ando continua sujo e úmido

Minha poesia não canta mais as alegrias do mundo

Vive suburbana comendo entre mendigos e prostitutas

Às vezes escondida em ruínas medievais

E nas cinzas dos mártires que se foram,

Vítima de cruéis inquisidores, não vive mais.

 

Mas meu canto dilacerado e febril

Meu amor mundano agora sofre em clínica

Estou como uma asa de borboleta

Deitado numa maca, desgraçado pela vida

Sangue que escorre em salivas desconhecidas

E mãos que me aprisionam, e bocas que me alimentam

Amor que não mais terei.

 

Sinto todos os sintomas, tomo todas as pílulas,

Calo diante do medo, grito meus segredos mais íntimos

Como lâminas de um liquidificador

Minha dor não vale mais que meus órgãos falidos

Descosturados para compor outra história

Nem o sangue no lençol, nem o esperma na seringa,

Nem o beijo no tubo de ensaio, nem o soro, nem o suor

Vão reconstruir os meus castelos juvenis  

 

Meus passos estão cansados e minha vida é uma bengala,

Tem dias que sou rodas, e minha poesia é a asa que me falta para voar!

 

Quero cantar nos corredores dos hospitais

E ao menos às crianças aidéticas deixar a minha paz

O sintoma mais poético do que patético

Para não cair no tédio de uma loucura fugaz.

 

O medo é cor-de-rosa e o caos é azul

Mas a desordem da minha alma me seduz

Espanto do meu pranto os urubus

Procuro no seu olhar o meu olhar

Um cristo comunista descendo da cruz

Para nos salvar, nos salva Jesus!

 

Que no infinito eu possa ouvir o meu grito

Como vôo de suaves patativas

A esperança silenciosa da vida

E o sussurro como sopro de Deus

É chegada à hora do adeus

E o trem da morte se aproxima.

 

E hoje o entardecer sangrou mais cedo

E um beijo ébrio desenhou meu medo

Mas meu amor foi mais forte e venceu a dor

E a luta pela vida, a minha vida prolongou

Mesmo que todos os sintomas da doença

Mexam com o meu corpo e a minha cabeça,

Não matarão o meu amor

 

E esse risco de prazer e agonia

Como uma cobaia desvalida pela sorte

Serei a luz que resplandece em minha poesia

E o suco da seringa, a borracha e a anestesia,

Apenas uma fantasia, não uma realidade,

De quem quer a VIDA e não a MORTE!

 

- Uma homenagem ao poeta do rock Cazuza -

* Paulo Carvalho é jornalista e escritor.

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