A dignidade estava Ali

05 de Jun / 2016 às 20h05 | Espaço do Leitor

Haroldo Lima 

Muhammad Ali foi herói dos esportes, do boxe, único tri-campeão mundial dos pesos pesados. Mas Ali foi também uma personalidade de destaque no atribulado fim da década de sessenta do século passado. Marcou com nitidez episódios que projetavam altivez e dignidade, fazendo corações oprimidos exultarem de alegria e esperança.

Descendente de escravos, foi-lhe dado o nome de Cassius Marcellus Clay, Jr.

Em 1960, conquistou a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Roma e, pouco depois, ao ser barrado em um restaurante só para brancos, no estado americano de Ohio, atiçou sua medalha em um rio. Mais de trinta anos depois, em 1996, já consagrado como ídolo mundial, recebeu de volta essa medalha, na abertura dos Jogos Olímpicos de Atlanta, uma das primeiras cidades americanas a eleger, em 1973, um prefeito negro, Maynard Jackson.

Sua primeira grande vitória no boxe foi em 1964, contra Sonny Liston. Sagrou-se campeão mundial dos pesos pesados. Tinha 22 anos.

Então, recém-saído da adolescência, recém-chegado ao topo da carreira de lutador, anunciou que mudara de nome, passara a ser Muhammad Ali. Com altivez explicou: "Era duro ter o nome que tinha porque era o nome de um branco que dava seu nome aos escravos. Agora pelo contrário, tenho o nome de Deus. Muhammad Ali, que lindo nome!".

Em 1965, concedeu revanche a Sonny Liston e o nocauteou no primeiro round, confirmando sua condição de campeão. Pouco depois, em 1967, protagonizou gesto eloquente, desassombrado, de sentido histórico.

O mundo assistia atônito a um dos maiores esforços de guerra de todos os tempos, promovido pelo Exército americano, contra um país do tamanho de Pernambuco, o Vietnam, habitado por um povo pobre e desamparado. Ao mesmo tempo, via comovido a resistência fantástica daquela gente humilde, que terminou levando a mais poderosa máquina de guerra do mundo a amargar derrota humilhante. 

Em 1967, o esforço de guerra americano era crescente, e a pretensão era massacrar o Vietnam. Eis que Muhammad Ali é convocado para integrar o Exército americano e ir à guerra do Vietnam. Então, o inesperado aconteceu: Muhammad disse não. 

A cena da recusa de Muhammad a ir à guerra tem aspectos dramáticos. Havia um ato formal: os recrutas ficavam perfilados; um oficial dizia o nome do recruta convocado; o recruta dava um passo à frente. O nome Classius Clay foi chamado. Não houve passo à frente. O oficial concedeu: Muhammad Ali. E também ninguém se moveu. 

Prisão por cinco anos, perda do título mundial, pesada multa. Nada abateu Ali. Ao contrário, pelo vernáculo, desfechou um cruzado fulminante: "Nunca vi nenhum vietcongue me desrespeitando. É na América que sou insultado".

Recordo essas passagens porque as vivi no período da ditadura militar no Brasil. Torcíamos pelo Vietnam, vibrávamos com essas atitudes irreverentes, corajosas, independentes.  Imaginar um jovem, negro, nos Estados Unidos, ante o Exército mais poderoso do mundo, portar-se com tal bravura, nos deixava empolgados.

Ao reverenciar a dignidade de Ali nesses episódios marcantes, simbolicamente o homenageamos com as palavras de outro ídolo do boxe, Myke Tyson: "Deus veio buscar seu campeão".

Haroldo Lima - é engenheiro, resistente da luta contra a ditadura no Brasil.

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