A luta de Niéde Guidon para preservar o maior tesouro arqueológico brasileiro

30 de Oct / 2017 às 16h03 | Variadas

Na porta do inferno d’A Divina Comédia, de Dante Alighieri, está o aviso tenebroso: “Deixai toda a esperança, vós que entrais”. Em um lugar quase tão quente, a cidade de São Raimundo Nonato, a 521 quilômetros ao sul de Teresina, Piauí, a mesma frase em italiano, esculpida no portão de madeira, dá as boas-vindas a quem chega à casa da arqueóloga franco-brasileira Niéde Guidon. Segundo ela, a escolha dos dizeres, ali pintados com tinta vermelha, se deu por afinidade literária, apenas. Mas quem conhece Niéde, braba que só, sabe bem: pode ser também um recado aos visitantes indesejados ou, pior dos mundos, desesperança mesmo.

Niéde está cansada de lutar. Guardiã do maior tesouro arqueológico brasileiro, o Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, com seus registros da vida do homem pré-histórico, ela pensa em se aposentar. E isso pode ser um tremendo problema, já que Niéde não preparou um sucessor. Aos 84 anos, cabelos curtos e brancos, a arqueóloga tem o ar cansado de uma combatente experiente. É uma senhora que se move com dificuldade, mas que ainda preserva a fala firme. Nasceu em Jaú, interior de São Paulo, filha de pai francês e mãe brasileira.

Formou-se em história natural na Universidade de São Paulo em 1959. Só foi estudar arqueologia em 1975, durante o doutorado na Sorbonne, em Paris, depois de “descobrir” as maravilhosas pinturas rupestres daquela terra seca do sul piauiense. Hoje, o parque soma 135 mil hectares nos municípios de Canto do Buriti, Coronel José Dias, São João do Piauí e São Raimundo Nonato, e concentra 1.354 sítios arqueológicos catalogados, sendo 183 preparados para a visitação turística. É a maior concentração de vestígios ancestrais do mundo, o que fez com que o parque fosse reconhecido como patrimônio cultural mundial da humanidade pela Unesco em 1991.

O desânimo parece mesmo ter pegado Niéde de jeito, mas ela faz questão de reafirmar sua força na última resposta, antes de partirmos. Questiono como o cidadão comum pode ajudar o Parque Nacional Serra da Capivara. “Quer que eu fale a verdade?”, ela retruca, com um risinho. “Indo a Brasília tocar fogo naquilo e não deixar ninguém sair de lá de dentro!” Eita! A velha Niéde de guerra respira. Que venha o inferno.

BBC-Londres

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