ESPAÇO DO LEITOR: A AÇÃO DELETÉRIA DE SETORES DO FUNDAMENTALISMO EM FACE DE DETERMINADAS EXPRESSÕES SIMBÓLICAS

“– Cortou-se a extremidade superior de todas as cruzes para delas se fazerem TT. Havia também uma coisa chamada Deus”. (Aldous Huxley)

Vez ou outra nos deparamos com episódios de descaso ou até mesmo de afronta moral, quando não física, a determinados símbolos, sejam eles de viés religioso ou laico. (O que não deixa de ser um tremendo contrassenso, já que vivemos num mundo constituído todo ele do elemento simbólico). Falamos de símbolo enquanto forma de apreensão da vida, do mundo, das coisas, do mistério; e que envolve a existência humana em toda sua complexidade.

Tudo o que existe e nos cerca tem a sua dimensão simbólica. Desde a água que bebemos, e na qual nos banhamos, até os sinais com os quais nos comunicamos, tudo está impregnado do elemento simbólico. Aliás, a função primordial do símbolo é comunicar. Tudo o que existe comunica e, ao comunicar, reveste-se da dimensão simbólica. O céu, a religião, a Bíblia, os sacramentos, a feijoada, a pizza às sextas-feiras, os acordes que penetram os meus ouvidos, a roupa colorida do palhaço, este lápis aqui deitado sobre minha escrivaninha, o caruru de Mãe Naná, a congada de seu Zequinha, meu rosto, meus olhos castanhos, meu nome, a coleira do meu cachorro vira-lata, tudo está prenhe do componente comunicativo e simbólico. O oposto do simbólico é o diabólico – aquilo que divide, que leva ao obscurantismo. Enquanto o simbólico comunica e une o diabólico silencia e desagrega.

A ausência do símbolo aponta para o esvaziamento completo do sentido da vida, desde o nascimento até a morte, inclusive o pós-morte. O desprezo do símbolo, como forma de leitura ou releitura da realidade, representa a negação da própria capacidade de transcendência, intrínseca ao ser humano. Ser humano que não é só natureza, mas sim, e sobretudo, espírito, criação, invenção, intuição, abstração, cultura. Como um ser cultural, o homem é necessariamente um ser aberto à perspectiva simbólica.

Mas nem todos pensam assim. Há aqueles que preferem trilhar na contramão de tudo isso, assumindo uma postura mais reducionista – com preocupações claramente moralistas – em detrimento da larga complexidade que abarca a existência humana e que foi construída ao longo de séculos e milênios de história.

Setores significativos do chamado fundamentalismo religioso não têm poupado esforço no sentido de desmerecer ou mesmo suprimir determinadas manifestações simbólicas, por entendê-las tratar-se de influência demoníaca. O alvo preferencial tem sido via de regra a religiosidade popular, com todo seu universo de signos e símbolos. Há vasto registro, inclusive, do emprego da violência física contra algumas manifestações religiosas, figurando como alvo preferencial aquelas de matriz africana, ou quaisquer outras que não se enquadrem em seus paradigmas doutrinais. Mas o caso mais emblemático, neste sentido, talvez seja aquele ocorrido alguns anos atrás, em que um bispo de uma igreja neopentecostal aparece na televisão arrebentando com fúria uma imagem de Nossa Senhora Aparecida – uma cena que lembra os tempos sombrios da iconoclastia.

A cena da imagem arrebentada é representativa na medida em que mostra como o fundamentalismo religioso, na sua quase totalidade, vê a questão do símbolo (seja ele de cunho religioso ou não); o que não deixa de ser contraditório, posto que a própria religião – incluindo tudo que a compõe, como seus templos, seus cultos, suas teologias, seus ministros etc – é toda ela uma realidade simbólica. O argumento é de que a cultura (e, com a cultura o símbolo), não é capaz de oferecer a salvação da alma. E que, se não é capaz de salvar a alma, mantê-la tornar-se-á de todo desnecessário. O parâmetro passa a ser exclusivamente aquele da salvação eterna, reduzindo o homem a um ser apenas religioso, ou escatológico, voltado tão somente para o plano sobrenatural, e completamente desvinculado da dimensão sociológica, antropológica, política, social, lúdica, cultural.

Semelhante concepção tem feito com que grandes fatias das nossas tradições populares ou simbólicas – porque tudo é simbólico – principalmente aquelas situadas em regiões interioranas, percam sua força expressiva, ou até mesmo deixem de existir. No nordeste do Brasil, por exemplo, é cada vez mais crescente o número de expressões culturais que são preteridas, ou, quando nada, diminuídas na sua importância pela acachapante onda conservadora e fundamentalista que a cada dia ganha força por aquelas searas, sobretudo entre as populações menos favorecidas.

Manifestações populares – de matiz religioso ou não – como os festejos juninos, as festas de largo, o samba de roda, o bumba-meu-boi, dentre outros, têm sido alvo de constantes ataques por parte desses setores fundamentalistas. Há uma tentativa clara e deliberada no sentido de se esvaziar tais linguagens, concorrendo para que num futuro, talvez não muito distante, elas percam sua capacidade comunicativa e se tornem por completo obsoletas. A própria televisão tem contribuído para isso, só que com outros métodos, e atendendo a outros interesses – em especial aqueles voltados ao mercado.

Não apenas as manifestações do povo são vítimas desse processo. Outros segmentos da cultura também têm caído na malha fina dessa ação deletéria e corrosiva. Por toda parte, antigos espaços de cultura, como cinemas, teatros, rádios, etc. vêm sendo paulatinamente transformados em templos religiosos, a serviços de grandes denominações que mais parecem empresas com fins lucrativos. Isto é, de um momento para o outro, todo um conjunto de patrimônio simbólico, resultado do esforço coletivo de seguidas gerações, é depositado na vala comum do desprezo e da indiferença, sem qualquer remorso, escrúpulo ou preocupação.

Proposital, ou não proposital (a primeira hipótese é a mais provável), o fato é que o maior perdedor deste jogo é o ser humano com todo o conjunto de valores simbólicos de que está imbuído. Minar tais valores significa, entre outras coisas, destituir as pessoas do seu lastro afetivo, lúdico e identitário, tornando-as, por conseguinte, suscetíveis a toda a sorte de atrativo. Ou seja, quer minar o homem, comece por destruir suas representações simbólicas.

O que fazer diante de tal quadro? A questão está em aberto.

José Gonçalves do Nascimento

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