ARTIGO - “HIPOSKILIA” DEFICIÊNCIA DE HABILIDADES CLÍNICAS

Carlos Augusto - Mestre em CMS pela Univasf

No tempo em que concluí meu curso Medico na Universidade Federal da Bahia, UFBA, ano de 1978 há, portanto, quarenta e um anos, e, por não ter à nossa disposição alguns dos instrumentos dos quais os alunos de hoje dispõem; naquele tempo, primeiramente ensinava-se e, depois, cobrava-se do aluno o exato modo de se relacionar com o doente; onde nos era dito, pelos nossos preceptores e Mestres que, diante de cada um de nós, futuros médicos encontrava-se um ser humano, carregando suas angustias, medos, fraquezas, frustrações e fragilizado pela doença.

Ao examiná-los, a depender das nossas conclusões, devia-se ter todo cuidado e, diante do diagnóstico feito, saber o que, e como, lhe dizer da sua evolução. Tudo isso nas matérias em que envolviam o ensino da Propedêutica,(cujo termo vem do grego propaideutikós, que significa “relativo à instrução, instrutivo”, “que serve para ensinar” ).

Hoje em dia, sem querer criticar o modo de ensino de nenhuma Universidade, trago ao conhecimento dos meus colegas discentes o assunto que se segue, porque achei bastante pertinente:

Diz o Professor Herbert L. Fred, MD MACP, no seu Artigo, cujo título original é: ”Hiposkillia: Deficiency of Clinical Skillis” (Deficiência de Habilidades Clinicas), publicado no “Texas Heart Institute Journal”, Vol 3, Nº 3, pp 82-83, “que a nossa profissão, sofre hoje, um grande desprestígio, estamos sendo orientados pela burocracia, perdemos nossa autonomia, o nosso prestigio tem se espiralado para baixo e o nosso profissionalismo está esmorecendo.

Mas nossos problemas não terminam aqui

Esconder-se na sombra desses males é mais uma doença pela qual somos os únicos responsáveis e, que põem em perigo o publico que atendemos.

Ela começa na faculdade de medicina, onde quase nunca se recebe a atenção que se merece.

Durante a residência continua sendo fácil de detectar, mas os esforços para isso não são rotina. E mesmo quando se torna notável; as medidas para corrigi-las são, muitas vezes, ignoradas, inadequadas ou, na melhor das hipóteses, temporárias.

O autor do artigo chama essa doença de HYPOSKILLIA – deficiência das habilidades clínicas. Por definição, os que são acometidos por ela estão mal equipados para prestar um bom atendimento ao paciente.

No entanto, prossegue o autor, as faculdades de medicina de todo o mundo, estão formando um número cada vez maior desses “hiposkylíacos” – Médicos que não conseguem fazer uma anamnese adequada, não conseguem realizar um exame clínico confiável, não conseguem analisar criticamente as informações que obtém, não conseguem criar um plano de tratamento consistente, têm pouco poder de raciocínio e comunicam-se de maneira precária.

Além disso, eles raramente despendem tempo suficiente para conhecer seus pacientes “completamente” e, pelo fato de serem rápidos para tratar a todos, não aprendem nada sobre a história natural da doença. Esses indivíduos, no entanto, tornam-se proficientes em determinadas coisas. Eles aprendem a solicitar todos os tipos de exames e procedimentos – mas nem sempre sabe quando solicitar ou interpretá-los.

Eles também aprendem a jogar o jogo dos números tratando um número, ou outro, resultado do exame, em vez de tratar o paciente a quem o número ou o resultado do exame pertence. E usando todos os exames e procedimentos sofisticados, inevitavelmente eles, involuntariamente, adquirirem a mentalidade orientada para o laboratório ao invés de orientada para o paciente.

A propósito, contribuem para essa mentalidade as organizações de manutenção da saúde, que forçam os médicos a atender um número máximo de pacientes, em um número mínimo de minutos, pelo mesmo valor.

O problema da deficiência das habilidades clínicas é longo e generalizado. Sua causa, no entanto, é evidente – treinamento deficiente.  E a culpa, é claro, recai sobre nós, os professores.

Por que, então, permitimos que tais deficiências se desenvolvam persistam e cresçam? A resposta, acredito, tem dois lados.    

Primeiro, os valores e prioridades globais da sociedade não são os mesmos que costumavam ser. Por exemplo, quando fiz o meu treinamento, em meados de 1950, (diz o autor do Artigo),  trabalho árduo, orgulho de sí,, devoção ao dever, responsabilidade rigorosa e a busca pela excelência, eram as normas.

Hoje, no entanto, a ênfase está nas horas de trabalho limitadas em busca por ganhos pessoais e focados no politicamente correto: Orgulho e (especialmente) responsabilidades quase desapareceram .

Consequentemente, as pessoas em quase todos os níveis – incluído muitos estudantes de medicina recém- formados, e membros do corpo  docente, estão satisfeitos com a mediocridade, a única regra que conhecem.

A minha segunda parte da resposta diz respeito ao treinamento que os professores em si recebem.

A maioria dos professores de medicina de hoje foi treinada após o início da década de 1970 – época em que a tecnologia médica começou a florescer.

A medicina hight-tech ( de alta tecnologia) é tudo o que eles já virão, a qual todos conhecem  e, portanto, todos podem ensinar.

Sem culpa própria eles não têm nenhuma ideia da medicina high-     touch (de alto toque).

Refiro-me a medicina baseada em uma anamnese cuidadosamente construída, atrelada a um exame físico pertinente, e avaliação crítica das informações obtidas.

Em seguida, determina-se que exames, se houver, sejam indicados. E se os exames forem considerados necessários, os mais simples são solicitados primeiro. 

Em comparação a medicina high-tech, essencialmente ignora a anamnese e o exame físico e, primariamente, com base na queixa principal, vai diretamente a uma série de exames que tipicamente incluem imagens de ressonância magnética ou tomografia ou ambos.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             

A contrapartida representa a apoteose da medicina Osleriana, que garante que tratemos o paciente não a doença.                 

A conclusão é: embora a tecnologia médica moderna tenha aumentado muito a nossa capacidade de diagnóstico e tratamento da doença ela também promoveu a preguiça, - especialmente a preguiça mental – entre muitos médicos.

A confiança habitual em muitos aparelhos médicos sofisticados para o diagnóstico, impedem que os médicos usem a máquina mais sofisticada e intrincada que sempre tiveram: o cérebro.

Existe uma cura para essa tirania da tecnologia?

Qualquer cura seria muito difícil, porque, no mínimo, iria exigir uma renovação total do corpo docente de nossas Faculdades de Medicina.

Atualmente esse corpo docente consiste, em grande parte, em dois grupos; fellows, os instrutores jovens que têm muitos fatos, mas pouca experiência e, professores mais velhos que são proficientes em apenas um estreito segmento da sua especialidade.

Ambos os grupos passam a maior parte do seu tempo, dando palestras, escrevendo artigos, trabalhando nas clínicas ou laboratórios, ou viajando para reuniões. Essas atividades sejam elas determinadas pela faculdade ou, auto impostas, limitam o contato entre o corpo docente e os estudantes.

E mandados recentes que limitam o tempo de trabalho do residente reduz ainda mais esse contato.

O ensino que existe ocorre principalmente na sala de palestras, sala de conferencias, ou no corredor fora da sala de aula e não na beira do leito do paciente. Estudantes e recém-formados acabam gastando muito mais o seu tempo participando de palestras e conferências e cada vez menos tempo atendendo seus pacientes.

         Com acesso limitado ao corpo docente, os treinandos voltam-se aos recém-formados ou para os colegas que estão um dois anos à sua frente, para buscar orientação – uma situação que eu considero “um cego conduzindo outro cego”.

O que precisamos para aliviar ou reverter, pelo menos potencialmente essa tendência?

Em primeiro lugar, precisamos de professores que reconheçam que, apesar do espectro dos comitês de revisão de residência, nosso trabalho é educar, não amansar nossos treinandos.

Isto posto, precisamos de mais professores que conheçam fisiologia, manifestações clínicas e história natural das doenças,  professores que saibam  que exames, se houver, devem ser solicitados, quando solicitá-los e como interpretá-los e de professores que usem a tecnologia avançada para verificar e não formular suas impressões clínicas. Precisamos de professores que realmente compreendam o valor de uma boa anamnese, as recompensas de um exame físico pertinente, o poder de saber como pensar e a importância da responsabilidade; professores que primeiro usem o oftalmoscópio, e não a ressonância magnética, para detectar hipertensão intracraniana, professores que usem primeiro os olhos e não um aparelho de gasometria para detectar cianose; professores que primeiro usem as mãos, não a tomografia computadorizada para detectar esplenomegalia e professores que usem sempre seus cérebros e corações, não uma horda de consultores, para tratar seus pacientes. Precisamos de professores que não solicitem exames caros, de última geração quando, exames mais baratos, convencionais, fornecem a mesma informação; professores que não administrem uma série de medicamentos em um esforço para aliviar todo possível doente; professores que valorizam fazer nada às vezes, fazer muito; e professores que percebem que muitos pacientes ficam bem apesar que fazemos, mas não por causa do que fazemos.

Infelizmente esses modelos de comportamento necessários são uma espécie em extinção. A maioria deles morreu ou se aposentou, e aqueles que ainda têm contato regular com os estudantes de medicina e médicos residentes recém-formados, são muito poucos para impedir a maré tirânica daqueles habituados ao uso excessivo de tecnologia médica moderna.

Podemos constituir esses modelos de ensino?

Acho que não. Mas mesmo que pudéssemos não seria suficiente.

Precisamos aproveitar os exemplos de modelos que estão praticando uma boa medicina fora da academia.

O que esses profissionais veem e fazem em cada dia tem pouquíssima semelhança com que os estudantes e recém formados veem e fazem na academia”.

Assim termina o Professor Herbert L. Fred o seu artigo sobre : ”Hiposkillia: Deficiency of Clinical Skillis” (Deficiência de Habilidades Clinicas).

Cabe-nos, na condição de Mestres, principalmente aqueles ligados às Faculdades de Medicina, repensar nossa didática. Ou não?