OPINIÃO: MARX E A DULCE DOS POBRES

Não há na história humana qualquer fato, qualquer acontecimento, seja de que ordem for, que possa ser “quimicamente puro”, no  sentido de inquestionável, imune a qualquer ressalva, acima do bem ou do mal,  ou coisa que o valha. A história nunca é feita da forma como idealizado, nem entre os santos, mesmo porque os santos, como todos os outros humanos, são filhos e frutos da história.

É comum acharmos que este ou aquele acontecimento deveria ter sido assim ou assado e não da forma como se apresenta (ou foi apresentado); que determinado personagem errou porque não disse ou não fez aquilo que nós reputamos como sendo o correto, mesmo que às vezes estejamos a mil anos luz desse personagem.

A coisa não é tão simples assim. 

O velho Marx já pontificava no seu “18 de Brumário” que os homens fazem a sua história, não segundo sua livre vontade e escolha, mas sob as circunstâncias com as quais se defrontam. E Ortega y Gasset, muito tempo depois, afirmaria que  "o homem é ele e suas circunstâncias".  
Com os santos não é diferente. Os questionamentos que ora são levantados sobre os "métodos" de que se valia a Dulce dos Pobres para angariar recursos deveriam servir, antes de tudo, para desmistificar a ideia (não poucas vezes fomentadas pela própria Igreja) de que os santos são figuras distantes, etéreas, sobre-humanas, longe de tudo e de todos.

Vejo a freira acusada de um bando de coisas, dentre elas a de ter recebido dinheiro de políticos, empreiteiros, e os cambaus.
Uma pergunta se impõe: eu, naquelas circunstâncias, teria feito o quê?

Vi uma vez um repórter perguntar a um alto escalão da República por que havia agido de uma forma e não de outra numa determinada questão. E alto escalão respondeu que em tal circunstância outra não poderia ter sido a sua decisão. O repórter insistiu:
 – Faria de novo?
E ele:
 – Naquela circunstância, certamente sim..

Para cumprir sua obra, Dulce se valeu do que estava ao seu alcance naquele momento específico da história. Então, os fins justificam os meios? Não. Nem esse argumento se aplica a este caso. Dulce colocou a causa dos pobres acima de qualquer outra coisa, quando nem mesmo o Estado falava de política pública de promoção social. E o fez em consonância com a tradição das comunidades religiosas que ao longo de séculos, milênios, dedicaram-se (e dedicam-se ainda) ao serviço daqueles que nada têm.

 Dulce agiu de acordo com uma tradição; com uma concepção de vida e de mundo; com um conceito de fé voltado para o amor a Deus e aos humildes. Essa foi sua preocupação maior e essa foi a base que serviu de alicerce para sua obra benfeitora. O resto era o detalhe e o detalhe  tinha pouca importância diante da grandeza de seu projeto.

Vivesse Dulce nos tempos de hoje, e tivesse ela o conceito que temos (ou achamos ter) da política, dos direitos sociais, da cidadania, da transparência (todos temas atuais), e de certo teríamos razões (ou talvez não) para questionar ou exigir determinadas posturas.  
Mas a história não quis que assim o fosse.

Fato é que os santos antes de serem santos são homens e mulheres, filhos do tempo e do espaço, e, portanto, parte ativa da história humana, que, como tal, nunca foi, não é, e nunca será  retilínea.
“Não julgueis para não seres julgados”.

José Gonçalves do Nascimento
Escritor
 

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