CANUDOS: UMA UTOPIA NO SERTÃO

Entre os anos de 1896 e 1897, mais da metade do exército da República foi enviada ao interior da Bahia, com o fim de destruir o arraial de Canudos. Enquanto a guerra se desenrolava no sertão, alguns órgãos de imprensa e alguns círculos intelectuais procuravam uma definição para aquela “curiosa comunidade”, como chegou a escrever um jornal inglês.

Por muito tempo, acreditou-se no caráter monarquista do arraial. Mas não faltou quem também o distinguisse como um reduto comunista. Alguns depoimentos, pinçados aqui e ali, apontam nessa direção.

A resenha do Hachette, de Paris, para o ano de 1897, apresentava Antônio Conselheiro como um profeta que pregava o “comunismo e ao mesmo tempo o restabelecimento da monarquia”.

O jornal O Paiz, do Rio, na edição de 30 de janeiro de 1897, informava que, entre os grupos que compunham o séquito conselheirista, havia aqueles que para ali se dirigiam “acreditando na ideia do comunismo tão apregoado pelo Conselheiro”.

Cícero Dantas Martins, o Barão de Jeremoabo, escrevendo no Jornal de Notícias, da Bahia, em 5 de março de 1897, referia-se a Canudos como uma “seita, cuja doutrina é o comunismo”.

Em trabalho publicado na Revista Brasileira, um mês apôs o término do conflito, Nina Rodrigues também firmou sua posição: “Antônio Conselheiro anormaliza extraordinariamente a vida pacífica das populações agrícola e criadora da província, distraindo-as das suas ocupações habituais para uma vida errante e de comunismo em que os mais abastados cediam dos seus recursos em favor dos menos protegidos da fortuna”.

Todavia, a obra manuscrita de Antônio Conselheiro não faz a menor alusão à doutrina comunista. Desconhece-se qualquer referência do peregrino àquele modelo político e econômico, ainda mais nos termos propostos por Marx e Engels.

Isto não quer dizer que o qualificativo utilizado pela elite brasileira para definir Canudos (qualificativo cujo único objetivo era desabonar a experiência conselheirista) esteja de todo desprovido de sentido. Só que o comunismo experimentado em Canudos se insere noutro gênero, um tanto diferente do chamado materialismo histórico, sistematizado nos círculos acadêmicos da Europa.

Para Afonso Arinos, o socialismo e certas práticas do comunismo de Canudos “só têm analogia com o comunismo dos peruanos, sob a organização teocrática dos Incas. Ali não havia pobres; todos trabalhavam para a comunidade, à medida de suas forças. Não proibia o comércio, nem que o indivíduo também trabalhasse um pouco para si”.

Concordamos com o ilustre autor de Os Jagunços, tomando a liberdade de acrescentar outros elementos.

A experiência social de Canudos tem raiz bíblica e foi inspirada nas primeiras comunidades cristãs, conforme referido no capítulo 2º dos Atos dos Apóstolos: Os irmãos eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos Apóstolos, na comunhão, na partilha do pão e nas orações. Todos os que acreditavam eram unidos e tinham tudo em comum. Vendiam suas propriedades e bens, e repartiam entre todos, conforme a necessidade de cada um.

O movimento de Canudos tem base também no ideal utópico, presente já em Platão, e pode ser comparado com a Icária, de Étienne Cabet, ou A Utopia, de Thomas Morus. Morus, por sinal, é citado nos manuscritos do Conselheiro, o que nos leva a supor que o peregrino tenha conhecido sua obra, ou pelo menos, parte dela. Publicada no início do século XVI, A Utopia constitui uma das primeiras referências no tocante ao chamado socialismo utópico.

É inegável a similaridade do movimento com a obra e o pensamento de um Saint-Simon, de um Robert Owen ou de um Charles Fourier. Tidos como os pais do socialismo utópico, eles foram pioneiros na luta pela transformação do modelo de sociedade vigente naquela transição entre os séculos XVIII e XIX. Saint-Simon é conhecido por suas ideias em prol do cooperativismo e da liderança das classes trabalhadoras; Owen, por sua experiência com a chamada Nova Harmonia; Fourier, pela instalação dos seus famosos Falanstérios. Mesmo divergindo em certos aspectos, os três foram tenazes na defesa de uma sociedade que tinha como princípios elementares a cooperação, o sociativismo, a vida comunitária e o protagonismo das classes populares.

O ideal utópico alimentado ao longo dos séculos pelo povo sertanejo encontrou pouso nas margens do rio Vazabarris, sertão da Bahia, dando origem a um novo modelo de sociedade. Cimentado no trabalho cooperativo, na partilha dos bens e na solidariedade entre as pessoas, tal modelo de sociedade foi capaz de por fim às antigas relações sociais, libertando os homens e mulheres das garras da servidão secular.

Para um mestre da filosofia, Martin Buber, "utopia é o desenvolvimento das possibilidades latentes na comunidade humana, de se concretizar uma ordem justa". Isto quer dizer que a utopia é algo perfeitamente factível. Sua concretização depende apenas do esforço humano.

Pode-se afirmar que Canudos foi uma utopia no sertão. Utopia concretizada, com lugar e endereço certos.

José Gonçalves do Nascimento

Poeta e cronista
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