Comunidades rurais remotas carecem de políticas públicas adequadas às realidades locais, mostra pesquisa

Ao se aproximar da realidade da Atenção Primária à Saúde em municípios rurais e remotos do Brasil, um grupo de pesquisadores, professores e estudantes de programas de pós-graduação de Saúde Coletiva e gestores do SUS observou cenários muito comuns e, ao mesmo tempo, diferentes entre si. 

Mas, o que tornava essas localidades semelhantes e o que as tornava únicas? Em busca de respostas e após uma profunda análise de dados, os estudiosos constataram que a principal porta de entrada do SUS em áreas rurais e remotas brasileiras sofre com a dificuldade de acesso e escassez de médicos e serviços de saúde e carece de políticas públicas adequadas às particularidades locais. 

A pesquisa foi coordenada pela ENSP, em parceria com a Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Foi financiada pelo Departamento de Atenção Básica (DAB) do Ministério da Saúde e pelo Programa de Políticas Públicas e Modelos de Atenção e Gestão à Saúde (PMA), da Vice-Presidência de Pesquisas e Coleções Biológicas (VPPCB/Fiocruz).

 

Fruto do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica, a pesquisa Atenção Primária à Saúde em Municípios Rurais e Remotos, realizada entre 2019 e 2021, analisou a Atenção Primária à Saúde do SUS de 27 municípios rurais remotos em todo o Brasil. 

O estudo teve como base uma tipologia de municípios rurais remotos, criada a partir da classificação do IBGE pelas pesquisadoras que participaram do estudo, a qual caracterizou seis áreas diferentes. Para a coleta de dados, foram realizadas 412 entrevistas com gestores, profissionais de saúde e usuários dos serviços de Atenção Primária à Saúde.

O objetivo foi compreender singularidades e especificidades da organização e do uso dos serviços de Atenção Primária à Saúde e de sua relação com a rede de saúde regional, para apoiar a formulação de políticas públicas, em busca da garantia de atenção integral e integrada nos territórios considerados rurais e remotos. Para difundir os resultados da pesquisa e interlocução com gestores e pesquisadores no tema, foi desenvolvido um site da pesquisa, com diversos recursos interativos. Os pesquisadores envolvidos no estudo participam da Rede PMA.

“O espaço rural sempre foi  considerado como sinônimo de atraso e ausência do que é urbano, pois o modelo de desenvolvimento econômico predominante no nosso país privilegia o urbano, e as políticas públicas são pensadas com base nessa realidade. Quando olhamos para o rural, vemos um déficit enorme, que reforça essa ideia de atraso. Por isso, realizamos a pesquisa. Não é um tema novo, mas é atual, em função dos problemas que permanecem a despeito dos estudos já realizados”, conta a pesquisadora da ENSP e uma das coordenadoras do estudo, Márcia Fausto. Ela explica que, além de sofrerem com a ausência de políticas públicas que incorporem as características particulares locais, as áreas rurais remotas do país também carecem de verbas para a saúde. Além do subfinanciamento crônico do SUS, o governo federal não leva em consideração a necessidade de recursos adicionais para aqueles territórios, segundo a pesquisadora.

As diferenças não existem apenas entre os municípios rurais remotos, mas também dentro das próprias localidades. Os dados da pesquisa revelam que, em um mesmo município, existem dessemelhanças sócio espaciais que impactam na forma de organização e oferta de serviços de Atenção Primária à Saúde. 
“Uma coisa é a sede municipal e outra é o interior do município. A área do interior é mais dispersa e desconcentrada, por isso, é muito mais difícil organizar os serviços de saúde ali”, explica Márcia. Ela conta que as políticas públicas de saúde são muito mais voltadas para as áreas concentradas, como as sedes municipais, e contam com dispositivos focados em uma realidade completamente oposta à das áreas mais rurais.

“Não podemos pensar políticas de saúde iguais para esses dois diferentes espaços, como se o interior fosse igual à sede municipal. É preciso pensar estratégias mais amplas e intersetoriais, dentro da política de Atenção Primária, que incorporem mecanismos que favoreçam o acesso igualitário para quem vive nas áreas mais remotas, dispersas e distantes, dentro do próprio município”, defende a pesquisadora.

O estudo também constatou que existem, ainda, municípios urbanos com características de ruralidade (dispersão da população e longas distâncias). Ou seja, nem todo município classificado como urbano tem necessariamente somente características urbanas, como é o caso de Manaus, que possui extensa área rural. Mais um motivo para a necessidade de elaboração de políticas públicas voltadas às especificidades locais, conforme alerta Márcia: “Apesar de existir uma classificação, é preciso tratar o município dentro de suas particularidades”.

Como as políticas públicas são pensadas quase exclusivamente para áreas urbanas, são feitos arranjos para a chegada de determinado serviço de saúde em áreas rurais, que não combinam com a forma de organização da Atenção Primária à Saúde local. “Os serviços que chegam a essas áreas mais distantes são cuidados pontuais. Existe, nessas localidades, uma barreira geográfica muito importante para configurar o acesso, pois as pessoas precisam se deslocar para a sede para chegar aos serviços de saúde e, muitas vezes, fazem a opção de não buscar o cuidado, dadas as barreiras que enfrentam, sejam geográficas, financeiras ou de organização do próprio serviço”, explica Márcia.

Um exemplo de cuidados pontuais que chegam àquelas regiões são as ações itinerantes, as quais, segundo a pesquisadora da ENSP e também coordenadora do estudo Ligia Giovanella, não têm sido implantadas de forma eficaz.

“Modelos itinerantes ou serviços de visitas periódicas são frequentes em comunidades rurais remotas em diferentes países, contudo, devem ser prestados em periodicidade regular, com a mesma equipe, a fim de favorecer a longitudinalidade do cuidado e ter disponibilidade de insumos, medicamentos e recursos diagnósticos para maior resolutividade em cada visita. Ademais, para garantir a continuidade assistencial, precisam ser combinados com outras ações, como visitas domiciliares, telefonemas periódicos/ contatos por WhatsApp de acompanhamento e estratégias de telessaúde”, defende.

FALTA MÉDICOS: A Atenção Primária à Saúde dos municípios rurais remotos também não escapa de um problema comum e já identificado em todo o país: a baixa provisão de médicos. Por se concentrarem em áreas historicamente caracterizadas como vazios assistenciais, as localidades sofrem com a alta rotatividade e déficit de profissionais que queiram morar na região, conforme revela a pesquisa.

Diferente dos médicos, os enfermeiros têm menos dificuldades de se fixar em municípios rurais remotos, pois muitos são nascidos na região e têm uma relação afetiva e familiar com a mesma. Sendo assim, os profissionais poderiam contribuir significativamente em situações de escassez de médicos, segundo Ligia. 

Para ela, o desenvolvimento de práticas avançadas de enfermagem com maior compartilhamento de cuidados clínicos, sobretudo entre médicos e enfermeiros, principalmente no acompanhamento dos grupos prioritários, é fundamental para a continuidade dos cuidados frente à vacância e dificuldades de fixação de médicos e rotatividade de profissionais: “A ampliação das funções de enfermagem tem sido difundida e incentivada no âmbito internacional para responder às mudanças no perfil demográfico e epidemiológico e à necessidade de ampliar a força de trabalho da Atenção Primária à Saúde para garantir acesso, eficiência e a qualidade. Enfermeiras já exercem práticas ampliadas na Estratégia Saúde da Família, como, por exemplo, na atenção pré-natal e puericultura, e podem ampliar o cuidado aos usuários com problemas crônicos e em ações preventivas, que necessitam de grande empatia e competência educativa. Claro que, para isso, é necessária formação, educação permanente específica”.

Outra figura importante em localidades mais distantes e rurais são os agentes comunitários de saúde, conforme revela o estudo. São eles que representam o SUS naqueles territórios, fazendo o monitoramento de casos, identificando uma situação de risco e acionando a equipe em emergências, além de assumir outras funções aquém das que estão preparados. “Os agentes comunitários de saúde também precisam ser formados, capacitados, para as práticas ampliadas que, muitas vezes, já exercem no cuidado às famílias e na ação comunitária. Em áreas muito remotas, muitas vezes eles são a única forma de contato das pessoas com serviços de saúde”, afirma Ligia. 

Segundo a pesquisadora, nas áreas rurais e remotas é necessária, ainda, uma oferta ampliada de ações pelas equipes Estratégia Saúde da Família, tanto individuais como coletivas. “A ampliação das ações individuais melhoraria a resolutividade e evitaria onerosos deslocamentos, com a incorporação de procedimentos e tratamentos para enfermidades específicas prevalentes no território, como, por exemplo, malária e leishmaniose, além da disponibilização de métodos diagnósticos, com coleta e processamento local, e de medicamentos para garantir a resolutividade das ações. Um escopo ampliado mais resolutivo exige o adensamento tecnológico das Unidades Básicas de Saúde (UBS), com maior disponibilidade de testes rápidos, equipamentos diagnósticos automatizados ou portáteis, abastecimento regular de medicamentos e vacinas, entre outros”, acredita a pesquisadora.

Outra ação necessária, segundo ela, é a adaptação da agenda das equipes das Unidades Básicas de Saúde. Com isso, cada procura de usuário à UBS seria uma oportunidade de reconhecimento de suas necessidades para além da demanda aguda que motivou a procura. “Este é um desafio para a Atenção Primária à Saúde, para a Estratégia Saúde da Família como um todo, mas, nos municípios rurais remotos, dadas as dificuldades de acesso e menor frequência de uso, torna-se ainda mais premente oportunizar cada contato, realizando ações programáticas de promoção e prevenção individuais a cada procura”, afirma.

DIFÍCIL ACESSO: Os municípios rurais remotos sofrem com a falta e dificuldade de acesso à atenção especializada, de acordo com dados da pesquisa. Isso porque os recursos estão concentrados nas capitais e municípios polos. “Tem casos de gestantes que precisam se mudar para a capital, por exemplo. Essa desorganização da rede e ausência de uma atenção regionalizada tem um reflexo enorme na dificuldade de acesso. E quando as pessoas têm acesso ao serviço, enfrentam problemas, como fila de espera, pois são lugares onde os profissionais de saúde muitas vezes não chegam”, explica Márcia.

Outro problema enfrentado pelas áreas estudadas é a escassez de serviços de urgência e emergência, os quais não estão dimensionados para localidades pequenas, devido ao porte populacional. “É imprescindível buscar uma nova conformação das atuais estruturas existentes (pequenos hospitais precários, ex unidades mistas, centros de saúde 24h), definindo-se um estabelecimento de saúde diferenciado na sede municipal do município rural remoto, com desenho singular adequado para atendimento 24 horas de urgências, leitos de observação, partos normais e apoio diagnóstico básico, em análises clínicas e imagem, com capacidade de resposta ajustada aos diferentes contextos de dispersão populacional, vias de acesso e oferta de serviços de saúde na região”, sugere Ligia.

Nesse difícil cenário, o transporte, tanto para os usuários quanto para as equipes de saúde, é fundamental, segundo Márcia. “Esse recurso não está dimensionado dentro do que é necessário para organizar o serviço de Atenção Primária à Saúde nessas localidades remotas. O gestor municipal é que tem que correr atrás e buscar o recurso para o transporte”, observa a pesquisadora. 

Mais Tecnologias de Informação e gestão participativa

A incorporação de tecnologias de informação pode favorecer o acesso à Atenção Primária à Saúde em localidades remotas, não como substitutivos do modelo de Estratégia de Saúde da Família, mas como ações vinculadas e complementares aos serviços fisicamente estruturados, revela a pesquisa. “As Tecnologias de Informação ajudariam muito na chegada do cuidado em localidades remotas. A falta de internet nesses lugares dificulta a incorporação dessas tecnologias, mas outras coisas mais simples poderiam ser incorporadas, como marcação de consulta por telefone, para tirar dívidas sobre sintomas ou uso de medicamento. Isso evitaria deslocamentos necessários ou adiamento de busca por serviço de saúde”, sugere Márcia.

A participação da população local é outro fator fundamental para a elaboração de políticas públicas eficazes e estratégicas, conforme indica o estudo. “Muitas vezes a forma de organização do serviço é mais uma barreira para o acesso. Além da melhora da disponibilidade de profissionais nestas áreas, barreiras burocráticas de acesso, decorrentes da organização das agendas, horários de funcionamento e processo de trabalho das equipes e UBS, podem ser dirimidas, atenuadas, na interlocução com a comunidade local de usuários, em processos participativos, para definir melhores formas de organização e localização da UBS, em correspondência com a disponibilidade de transporte e fluxos dos usuários”, exemplifica Ligia.

Segundo a pesquisadora, a articulação de políticas públicas com organizações e lideranças comunitárias locais também é essencial para uma melhor organização dos serviços ofertados. “Conselhos locais de saúde de cada UBS devem integrar lideranças comunitárias e representantes ou profissionais de outros setores de políticas públicas e serviços sociais, como escolas e assistência social que atuam no território, e fazer a interlocução com secretaria de obras, saneamento e transporte, para mediar ações intersetoriais necessárias para a disponibilidade e melhoria dos serviços públicos nos territórios”, sugere Ligia.

Fiocruz Foto divulgação