Do sertão da Bahia ao TJ, nova juíza empossada no Acre foi empregada doméstica e trabalhou na roça: ‘educação salva vidas’

De beca, boa oratória e uma história inspiradora que emocionou os que estavam presentes na posse dos novos juízes do Tribunal de Justiça do Acre (TJ-AC). Quem vê hoje Rosilene Santana, de 38 anos, empossada juíza, não imagina a longa trajetória dela entre o sertão da Bahia, onde os pais eram agricultores e onde chegou a trabalhar na roça, até os tribunais do estado. É mais uma história de como a educação é capaz de mudar a vida das pessoas.

A segunda mais velha de sete irmãos, com perfil apaziguadora, ela sonhou em ser juíza antes mesmo de saber de fato que papel desenvolveria. Sempre disposta a ouvir os dois lados da história dos irmãos, passou a ser chamada de juíza dentro de casa.

Hoje, lotada provisoriamente na Vara de Infância e Juventude de Rio Branco e no 2º Juizado Especial Cível na capital, Rosilene relembra a infância e adolescência difíceis. Mesmo enfrentando muitos obstáculos, tudo era levado com muita leveza por ela. Isso porque o sonho dela sempre foi estudar.

“Nasci na roça e morei na roça até os 12 anos de idade, que foi quando fui morar sozinha com minha irmã que tinha 13 anos e nós fomos estudar. De 10 aos 12 anos fiquei sem estudar porque naquela comunidade que eu morava não teve aula, não foi designado um professor naquele ano para nós, para nossa comunidade. Então, aos 10 anos não estudei, quando eu tinha 12 foi aí que a gente saiu da roça e fomos morar sozinhas na cidade, eu e minha irmã, e lá nós encontramos alguns obstáculos, dificuldades financeira e de sobrevivência,” relembra.

Ao chegar na cidade, ela e a irmã foram morar na casa de conhecidos dos pais dela. “Nós dormíamos em uma cozinha desativada, as duas em um colchão de solteiro.

“Conto essa história não para me mostrar como coitada, mas a gente levava tudo com muita leveza, não sofria. Muito pelo contrário, a gente ficava feliz por estar tendo a oportunidade de estudar, porque meu pai queria ter estudado e ele não conseguiu, não teve a oportunidade. Então, apesar de ter sido uma loucura, ele deixar duas meninas de 12 e 13 anos morarem sozinhas, saindo da roça para morar na cidade, ele teve coragem e preferiu arriscar”, destaca.

Com medo de que voltassem para a roça, as duas irmãs não contavam as condições em que estavam. Mas, a mãe de Rosilene chegou a visitá-las. Enquanto isso, as duas meninas trabalhavam como domésticas para sobreviver, ganhando pouco mais de R$ 20. A mãe, quando ia visitá-las, também levava alguns temperos para vender na feira da cidade.

Ao ver que as duas filhas moravam em uma cozinha desativada, ela decidiu procurar outro lugar. E as meninas foram morar em uma casa que não tinha banheiro.

“Eu dizia para a minha mãe não se preocupar, porque tínhamos medo de voltar para roça, e falava para ela que tinha comida na escola. Essa era a refeição mais reforçada que tínhamos, era na escola, porque a casa que trabalhávamos também era de pessoas simples, mal tinha para eles também. Eles pagavam a gente porque precisavam trabalhar e precisavam de alguém para ajudar. Foi nessa época que a gente começou a ir no açougue municipal, que ainda tem na cidade, e pedia os restos de ossos, os restos das coisas e fazíamos como sopa, cozinhava e completava a refeição que a gente fazia na escola. A gente levava isso com muita tranquilidade. Depois começamos a revender produtos que tinham em revistas”, relembra.

E no final de semana, elas faziam mais faxina e nas férias escolares voltavam para o povoado e trabalhavam no roçado para ajudar os pais.

“A gente produzia feijão e milho para vender. E brincávamos com o que tinha, por exemplo, nunca tivemos uma boneca. Quando queríamos brincar assim, fazíamos bonecas de milho.”

EDUCAÇÃO BÁSICA: No povoado, o ensino era precário. Era um professor para dar aula para todos os alunos, de diferentes séries. Até o segundo ano do ensino médio, ela conta que nunca tinha tido acesso a uma biblioteca. Outra coisa que Rosilene lembra é que começou a estudar aos 7 anos de idade, bastante atrasada, e ainda ficou mais um tempo sem estudar, dos 10 aos 11 anos, como já citou.

Foi então que aos 19 anos decidiu se mudar para Colatina, no Espírito Santo. Chegando lá, teve outro problema, o início das aulas na nova cidade era mais cedo que na Bahia, onde morava antes. Com isso, ela não conseguiu se matricular no 3º ano, porque quando chegou na cidade as matrículas já haviam sido encerradas. Por isso, terminou o ensino médio no supletivo.

“Fiquei louca, não queria perder mais um ano, porque comecei a estudar com 7 anos, comecei velha. E aí fui no supletivo, me matriculei e terminei para não perder o ano.”

Os planos, ao terminar o ensino médio, era conseguir um emprego e fazer o curso de direito para se tornar juíza, como sempre sonhou, mas não foi tão fácil assim. “Dei um passo para trás e fui fazer alguns cursos para conseguir uma profissão e poder pagar minha faculdade de direito. Fiz vários cursos e na época vi no jornal que o instituto federal estava com inscrições abertas e aí tinha três cursos, para mim qualquer um servia, só precisava saber qual tinha mais oportunidade de trabalho, nenhum dos três era meu objetivo de vida. Então, fiz edificações”, destaca.

A partir daí, Rosilene começava a redesenhar seu futuro. Ao se inscrever, veio o medo de não conseguir passar nas 25 vagas, isso porque ela reconhecia a deficiência da sua educação de base, com pouca orientação. Mas isso, não a fez desistir e sim motivou ainda mais para que ela fosse em busca de ajuda.

“Eu morava de um lado de um pensionário em que os meninos pagavam professor particular de química, física e matemática e eu precisava das aulas. Então, falei com o professor e ele me deu 50% de desconto nas aulas e as outras matérias eu estudava sozinha. Fiz a prova e fiquei em 21ª entre as 25 vagas. Eu lia o jornal com o resultado e não acreditava”, relembra.

Além da ajuda do professor, a juíza conta que estudava na mesa de uma vizinha, já que a casa que conseguia pagar não tinha estrutura para isso. “Eu pedi para a vizinha para eu estudar na mesa dela e ela deixou”, conta bem-humorada.

Resumidamente, ela conseguiu fazer o curso, trabalhar, e finalmente conseguir pagar a faculdade. Porém, mesmo ganhando na época pouco mais de R$ 700, pagar um curso sozinha e se manter ainda era bastante difícil. Ela fez a prova em duas faculdades particulares e em uma delas ela conseguiu um desconto de 50%.


Assim, ela se formou na faculdade Castelo Branco, em Colatina, e no nono período passou no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Mas, para se tornar juíza, precisou advogar por três anos, prática exigida para o concurso de magistratura.

‘EDUCAÇÃO SALVA VIDAS’
Foi uma longa trajetória, mas ela faz questão de destacar que encontrou boas pessoas nesse caminho. “Eu faço questão de ressaltar essas pessoas que passaram na minha vida e que foram bastante importantes. Todos os dias posso me ajoelhar e agradecer a Deus pelos anjos que colocou na minha vida. As pessoas percebiam que eu só queria estudar e me ajudavam como podiam.”

A educação, assim como em muitas histórias, foi aonde Rosilene pôde mudar de vida. Do trabalho na roça e como faxineira, a bagagem pessoal é grande e a fez se tornar uma juíza empática, sensível e humana.

Questionado sobre como sua história interfere no exercício de sua profissão, ela diz que isso a ajudou a entender a importância de ouvir e entender a história de cada um.

“No meu caso, acho que essa carga que trago comigo vai ser muito importante na hora de julgar, porque julgar é uma tarefa difícil, requer muita responsabilidade. Minha história é fundamental nas minhas decisões, embora o juiz deva ser imparcial, não somos neutros, principalmente nessa questão de políticas públicas, em especial a educação, que é muito importante.”

A mãe de Rosilene não conseguiu vê-la juíza. Ela morreu em 2018, já o pai ainda é vivo e mora no mesmo povoado Bahia. Quando soube da aprovação da filha, ficou, segundo ela, choroso, mas reforçou a ela que sabia que ela passaria.

No dia da posse, incentivada pelos colegas, ao ler seu discurso, ela fez uma breve síntese de como foi sua trajetória, como uma menina saiu do sertão da Bahia com o sonho de se tornar grande, não no sentido de poder, mas no sentido de expandir. Questionada sobre o que diria para tantos jovens que se veem nessa situação, ela se mostra uma defensora feroz da educação.

“Eu diria que a educação é capaz não só de transformar realidades, mas de salvar vidas.”

G1 Bahia Foto reprodução