Portaria do ICMBio restringe possibilidade de mitigar danos ambientais

Servidores do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) foram surpreendidos na semana passada com a publicação de uma portaria que impõe mudanças profundas na forma como o órgão vai fixar as condicionantes ambientais nos processos de licenciamento.

O documento gerou polêmica entre funcionários do Instituto e entre ambientalistas, que vêem com preocupação não só as novas normas, mas também a forma como elas foram publicadas. Entre os principais pontos repudiados estão o fato de que, na prática, a nova norma significaria a perda de autonomia do órgão no processo de determinação das condicionantes e o engessamento da compensação ambiental.

Condicionantes são compromissos assumidos por um empreendedor no momento do licenciamento de uma obra ou atividade potencialmente poluidora, a fim de minimizar (mitigar) e compensar os impactos ambientais do objeto do licenciamento. 

Na tarde desta terça-feira, a Associação Nacional dos Servidores Ambientais (Ascema Nacional) publicou uma nota condenando o documento, que chamou de “arbitrário” e “ilegal”.

O questionamento de parte dos servidores começa com quem assina a portaria: o procurador-chefe da procuradoria especializada do ICMBio, Dilermando Gomes de Alencar, que aprova uma Orientação Jurídica Normativa (OJN) vinda da própria procuradoria do órgão.

Pela lei, a procuradoria deve, de fato, analisar sob a ótica jurídica as normas do Instituto. Mas a análise do órgão deve ser encaminhada para a Presidência do ICMBio que, então, opta por acatar ou não a orientação.

Segundo a nota da Ascema, o procurador-chefe “acumula uma série de posicionamentos equivocados que impõem aos servidores do ICMBio atuar na contramão da legislação ambiental vigente no país”.

Em novembro passado, Alencar gerou polêmica ao criticar a “timidez” do ICMBio e defender que o órgão revisse sua postura em relação à presença de comunidades tradicionais em áreas protegidas. Na época, ele disse que o ICMBio deveria ser “menos João Gilberto e mais Alcione”.

Em relação ao conteúdo da Orientação Jurídica Normativa, os questionamentos começam na primeira frase do documento, que diz: “Não devem ser exigida [sic] condicionantes ambientais mitigatórias ou compensatórias abusivas, em sede de estudos de impacto ou outras liberações de atividade econômica a cargo do ICMBio”.

O documento, no entanto, não especifica em nenhum momento o que se configuraria como “abuso” ou cita exemplos de tal. Um pouco mais abaixo, a portaria diz que as condicionantes não devem ser exigidas em atividades que “requeiram execução ou prestação de qualquer tipo para áreas ou situações além daquelas diretamente impactadas pela atividade econômica”.

Isto é, os compromissos de mitigação e compensação requeridos pelo ICMBio não podem extrapolar as áreas ou o local em que a atividade é desenvolvida.

Em sua nota, a Ascema lembra que, não raro, uma medida condicionante pode ser estabelecida pelo ICMBio em observação ao princípio da precaução ou mesmo considerando os impactos ambientais indiretos, cumulativos e sinergéticos causados pelo empreendimento.

“É equívoco grotesco e arbitrário que o autor da OJN comete ao ignorar a definição de poluidor como aquele responsável tanto direta quanto INDIRETAMENTE por atividade causadora de degradação ambiental”, diz a Associação Nacional.

Para o ambientalista Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (PROAM), a portaria “engessa” os processos de compensação ambiental. “Segundo a normativa, se não houver espaço local para compensar, esgotam-se as possibilidades sem nenhuma visão ecossistêmica, que é elemento essencial para o licenciamento ambiental”, disse, em entrevista a ((o))eco. 

“Vivemos tempos do antropoceno, onde os impactos são intensos e múltiplos. Como resultado, temos sinergias e cumulatividades como nunca a humanidade experimentou. Nesse contexto, pretender engessar compensações a territórios restritos é enxugar gelo”, complementa.

Outro questionamento feito pela Associação Nacional dos Servidores Ambientais é a lógica adotada pelo procurador-chefe, que beneficiaria o setor produtivo e não o meio ambiente. 

De fato, a portaria sugere que os servidores do ICMBio sigam um “itinerário” no momento da fixação das condicionantes ambientais. Nesse itinerário, eles teriam que avaliar se existem outras alternativas “técnica e economicamente” mais viáveis à condicionante ambiental imposta e se os benefícios resultantes dessas condicionantes superam os prejuízos causados ao empreendimento, em uma “análise de custo-benefício”.

Para a Ascema, ao propor essa linha de análise, o procurador ignora os fundamentos básicos de sustentabilidade, que são aqueles justamente buscados quando uma condicionante é fixada.

“A aplicação de condicionantes tem o objetivo de garantir o cumprimento do princípio constitucional que determina a promoção do desenvolvimento social, econômico, ambiental e ético, no intuito de assegurar as condições favoráveis para o bem-estar das gerações presentes e futuras. Isso está longe de ser uma mera “análise de custo-benefício”, diz a nota da Ascema.

A portaria em questão também determina que os servidores do ICMBio devem se “articular” diretamente com o responsável pelo empreendimento e com agências reguladoras da atividade que se relaciona o empreendimento, antes da fixação das condicionantes.

Para Carlos Bocuhy, isso restringiria a capacidade de autonomia do órgão licenciador, pois remete o arbítrio ao setor estatal em desfavor do setor ambiental, que, segundo ele, demanda independência para realizar transformações intersetoriais para a sustentabilidade.

“Trata-se de uma normativa que visa abrandar as funções constitucionais exercidas por um órgão do Sisnama [Sistema Nacional do Meio Ambiente], buscando a facilitação para setores econômicos. Isso é um absurdo”, disse.

Em sua nota, a Ascema orienta os servidores a não seguirem o que foi estabelecido na portaria e a relatar qualquer “assédio, coação ou intimidação” que eles eventualmente venham a sofrer pelo não cumprimento das novas normas.

((o))eco entrou em contato com o ICMBio e com a Procuradoria Federal Especializada junto ao órgão, mas não obteve resposta até o fechamento da matéria. O espaço permanece aberto para atualizações.

 

Eco Nordeste/Cristiane Prizibisczki