Artigo - "Hércules-quasímodo"

No dia 2 de dezembro de 1902 – portanto há 120 anos – vinha a lume, na então capital da República, um dos maiores monumentos da literatura brasileira: "Os sertões (campanha de Canudos)", do jornalista, militar e engenheiro Euclides da Cunha, nascido em 20 de janeiro de 1866 e morto em 15 de agosto de 1909.

Reputo injustas e descabidas certas críticas que comumente são lançadas em desfavor da obra de Euclides da Cunha, mormente "Os sertões", o livro que o consagrou no mundo das letras e das ciências.

Ora, Euclides foi um homem do seu tempo, que escreveu com o olhar e com as tintas do seu tempo. Portanto, não há que se exigir, transcorrido mais de um século, que ele diga o que no momento presente nós entendemos como sendo o mais politicamente correto. Seria puro anacronismo. Os tempos são outros; os conceitos são outros; os referenciais, em todos os campos do conhecimento, também são outros.

Euclides, ademais, foi um estilista. Estilista exímio e inimitável. Reconhecido pelo melhor da crítica ao longo de mais de 100 anos. Ele criou um estilo próprio e único, cujo traço mais significativo é o do emprego de antíteses e paradoxos, que, no caso específico d’"Os sertões", tem como marca maior o binômio "Hércules-Quasímodo", misto de valentia (Hércules) e deformidade (Quasímodo – uma referência ao monstrengo de Vítor Hugo).

Leiamos, a propósito, o próprio Euclides da Cunha. O trecho a seguir é  d'"Os sertões":

"O sertanejo é, antes de tudo, um forte. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. É o homem permanentemente fatigado. Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude. Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar desassombrado e forte, e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias."

Trata-se, pois, de uma formulação de natureza poética e literária, que precisa ser lida e interpretada do ponto de vista poético e literário, e não como um tratado de antropologia, sociologia, ou coisa que o valha.

Antes de qualquer coisa, "Os sertões" é uma obra de literatura; e é como obra de literatura que ele precisa ser lido.

Acho de uma beleza invulgar a descrição que faz Euclides do sertanejo. Retomemos o texto anterior: À primeira vista, o sertanejo “parece” “desgracioso”, “desengonçado”, “torto”... “Entretanto” [atente-se para a conjunção adversativa], toda essa aparência ilude. Basta o aparecimento de qualquer incidente, e da "figura vulgar do tabaréu", "reponta" "o aspecto dominador de um titã".

Na poesia de Euclides, o sertanejo não só é admirado, como também cresce e se agiganta. A figura de linguagem por ele utilizada tem por objetivo precípuo realçar a força e a coragem dos habitantes do grande sertão.

Valho-me, a propósito, da palavra tarimbada de Gilberto Freyre, pinçada no prefácio à 1ª edição do livro "Diário de Uma Expedição", publicado trinta anos após a morte do escriba fluminense:

“Ninguém mais do que ele enalteceu tanto o sertão e o sertanejo. Em Euclides a tendência foi quase sempre para engrandecer e glorificar as figuras, as paisagens, os homens, as mulheres, as instituições com que se identifica o vaqueiro, o sertanejo, o próprio jagunço. Até mesmo o negro dos sertões – sobrevivência do quilombola colonial – sai engrandecido de suas páginas”.

Como bom artista que foi, Euclides se valeu dos recursos da palavra para enaltecer o sertão e sua gente, daí resultando um dos maiores monumentos da literatura brasileira de todos os tempos: "Os sertões (campanha de Canudos)".

José Gonçalves do Nascimento

Escritor